Pneus em Chamas, Tratores na Rua: O Grito dos Agricultores Europeus Contra o Acordo UE-Mercosul em Bruxelas
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| fonte da imagem: CNN Brasil |
Em protesto massivo com confrontos e barricadas de fogo, milhares de produtores alertam para a "morte do campo europeu" e exigem o fim das negociações com o bloco sul-americano. A política agrícola da União Europeia está no centro do furacão.
Bruxelas, 18 de Dezembro de 2025 – O coração da União Europeia transformou-se hoje num campo de batalha simbólico e real. O cheiro acre de borracha queimada misturou-se com o diesel dos tratores no ar gelado de Bruxelas, enquanto milhares de agricultores de toda a Europa convergiram para a capital belga num protesto de dimensões históricas. O alvo principal: o acordo de livre-comércio entre a UE e o Mercosul, negociado há anos e agora na fase decisiva de ratificação, visto pelos produtores como uma sentença de morte para a agricultura familiar e padrões europeus.
O protesto, convocado pelas maiores entidades do setor, como a Copa-Cogeca e federações nacionais, começou pacífico com uma lenta e massiva coluna de mais de 800 tratores que paralisou o anel viário da cidade e se dirigiu às instituições europeias. Os veículos, adornados com bandeiras nacionais e faixas com slogans como "Não ao Mercosul", "Nossa morte está no acordo" e "UE, traidora dos seus agricultores", criaram um cenário surreal no distrito europeu.
No entanto, a tensão escalou rapidamente perto do Conselho Europeu. Um grupo de manifestantes, frustrado com o que consideram a surdez das instituições, ateou fogo a uma barricada de pneus, criando uma densa cortina de fumaça negra que serviu tanto de sinal de alarme quanto de metáfora para a raiva do setor. A polícia, em grande número e com equipamento de controle de distúrbios, respondeu com jatos de água e gás lacrimogêneo para dispersar os agricultores que atiravam foguetes e objetos. Houve confrontos pontuais, com correria e detenções, embora sem feridos graves reportados até o momento.
O Acordo no Centro da Tormenta
Para entender a fúria que levou pneus a arderem em frente à Europa, é preciso mergulhar na letra fina do acordo. Os agricultores argumentam que o pacto com Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai abrirá as portas para uma inundação de produtos agropecuários produzidos sob regras menos rigorosas que as europeias em termos ambientais, de bem-estar animal e de segurança alimentar.
"É uma concorrência desleal e suicida", desabafou, por entre a fumaça, Pierre Lefèvre, produtor de leite da região da Valônia, na Bélgica. "Nós somos estrangulados por regras cada vez mais custosas: bem-estar animal, 'Green Deal', redução de pesticidas. São normas necessárias, mas que têm um custo. E agora querem que competimos de igual para igual com carne bovina de pastagens desflorestadas e soja com resíduos de pesticidas há muito banidos aqui. Ou a Europa defende o seu modelo, ou acaba com ele."
Este sentimento ecoa desde os vinhedos do sul da França até às planícies cerealíferas da Polônia. Os setores mais sensíveis são os da carne bovina, aves, açúcar e etanol, onde as quotas de importação com tarifas reduzidas do Mercosul podem derrubar os preços no mercado interno.
A Falta de Reciprocidade e o "Cavalode Troia"
O cerne da crítica é a falta de reciprocidade. As regras sanitárias e fitossanitárias (SPS) são o principal ponto de atrito. A UE exige que as importações cumpram seus padrões, mas os agricultores desconfiam da capacidade e da vontade de fiscalização. Eles temem que o acordo seja um "cavalo de Troia", minando por dentro as próprias regras comuns do bloco.
"Firmar este acordo é recompensar um modelo predatório que estamos a tentar combater com o Pacto Ecológico Europeu", afirmou Maria Schneider, uma agricultora orgânica alemã presente no protesto. "É uma contradição gritante que desacredita a própria UE. Como podemos pedir aos nossos cidadãos que apoiem a transição verde se subsidiamos a destruição da Amazônia com o nosso apetite por commodities baratas?"
A Comissão Europeia defende o acordo, argumentando que ele inclui capítulos vinculativos sobre desenvolvimento sustentável e que as quotas são limitadas, representando uma pequena percentagem do consumo da UE. Defende também a oportunidade para exportações europeias de alto valor, como queijos, vinhos, bebidas espirituosas e maquinaria agrícola. No entanto, para os manifestantes, estas promessas soam vazias perante a ameaça concreta à sua sobrevivência económica.
A Crise de Legitimidade da Política Agrícola Comum (PAC)
O protesto contra o Mercosul é apenas a ponta do iceberg de um descontentamento profundo que fermenta há anos. A Política Agrícola Comum (PAC), outrora a política mais integrada e dotada de fundos da UE, é hoje vista por muitos como um emaranhado burocrático que sufoca o produtor.
As exigências da transição verde ("Green Deal"), embora apoiadas em teoria, são vistas como impostas de cima para baixo, sem o financiamento adequado e sem considerar a realidade das explorações familiares. A gota d'água para a mobilização atual foi o anúncio, há duas semanas, de que a Comissão avançaria com a assinatura política do acordo com o Mercosul no primeiro trimestre de 2026, ignorando um apelo do Parlamento Europeu por mais garantias.
"Eles não nos ouvem. A PAC tornou-se um pesadelo de formulários e condicionalidades. E agora este acordo. Viemos aqui para fazer-nos ouvir, porque em Bruxelas só parece importar o livre-comércio, não a soberania alimentar", declarou Luca Lombardi, líder de um sindicato agrícola italiano.
A Resposta das Instituições e o Futuro Incerto
Perante os tratores e os confrontos, a resposta oficial foi cautelosa. A presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que se reunirá com líderes agrícolas na próxima semana, emitiu um comunicado reconhecendo "as preocupações legítimas" dos agricultores e reafirmando que "nenhum acordo será assinado à custa dos agricultores europeus ou dos nossos padrões". No entanto, não anunciou qualquer paralisação nas negociações.
Já o Comissário do Comércio, Valdis Dombrovskis, manteve a linha dura, defendendo os "enormes benefícios económicos" do acordo em um fórum paralelo. Esta dissonância dentro da própria Comissão reflecte a fratura política que o tema causa. Países como França, Irlanda, Polônia e Áustria são fortemente céticos ou contra o acordo no seu formato atual. Outros, como Alemanha e Espanha, tendem a ser mais favoráveis, pressionados pelos seus sectores industriais e exportadores.
O Parlamento Europeu, que terá de ratificar o acordo, está profundamente dividido. A maioria de centro-direita (PPE) e os liberais (Renew) são mais abertos, enquanto socialistas, verdes e a esquerda radical alinham-se com muitas das críticas dos agricultores.
Além dos Pneus Queimados: O Que Fica?
O protesto de hoje em Bruxelas, com seus símbolos de fogo e confronto, marca um ponto de não-retorno no debate. Os agricultores europeus, frequentemente romanticizados mas há década em declínio económico e político, reafirmaram-se como um ator de peso capaz de paralisar capitais e forçar a agenda.
As imagens dos tratores diante dos edifícios de vidro da UE são poderosas. Elas representam mais do que um setor em crise; simbolizam o clímax de um conflito sobre o futuro da Europa: uma Europa aberta ao mundo a qualquer custo, ou uma Europa que protege o seu modelo social, ambiental e produtivo.
O acordo UE-Mercosul, já moribundo por várias vezes, enfrenta agora o seu obstáculo mais formidável: a revolta organizada de quem alimenta o continente. A fumaça que pairou sobre Bruxelas hoje é um sinal de alerta inequívoco. Se as instituições europeias ignorarem este grito, arriscam-se não só a ver o acordo naufragar, mas a alimentar um ciclo de desconfiança e conflito social que pode definir os contornos políticos da UE nos próximos anos.
O campo europeu não está apenas a pedir subsídios. Está a exigir respeito, coerência e um lugar central num projeto europeu que, garantem, o está a trair. O cheiro da borracha queimada em Bruxelas pode ser difícil de dissipar.
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